domingo, 26 de junho de 2011

Onde estão as chaves?

Hoje eu fui até a casa da minha mãe. Porque eu precisava muito falar com ela. Porque era domingo e tinha jogo e eu não suporto mais futebol. Porque era final de bimestre a gente sempre passeia, todo final de bimestre. Porque eu passei por tantos lugares nesse mundo, que deve existir algum em que eu me sinta bem.
Passei na casa da minha mãe porque ela faz tanta, mas tanta falta, que confunde a minha razão e mistura as minhas lembranças. E hoje eu não sei mais o que é realidade e o que é sonho. Ou pesadelo.

Porque nesse ano eu vivi um monte de coisas, mas o que eu melhor aprendi foi engolir a tristeza e imprimir um sorriso: assim as pessoas se sentem melhores. No começo você até tenta dialogar com a razão e explicar que não haverá emprego, viagem ou filhos que diminuirá a falta que ela faz. Mas aí vêm os números, um mês ainda é pouco, mas seis meses já é bastante e então o número mágico: um ano. E você é obrigada a superar. Então você aprende e pede um café. E sorri. E eu tomei tantos cafés nesse último ano… Mas as vezes você recai, e tenta explicar mais uma vez, que ela era sua mãe e sua melhor amiga. Que só ela te conhecia e te dizia a verdade. Que você se divertiam e brigavam. Que comiam hambúrguer no fim da tarde de domingo e passavam a noite corrigindo provas. Que você dormiu na cama dela, porque estava doente, e ela dormiu no sofá. Então elas te dizem para seguir a vida, e não cultivar sofrimento. Parecem se esquecer que você defendeu o mestrado, estudou, aprendeu outra língua, não largou os empregos. Mesmo sem achar que essas coisas façam sentido, já que ela não está mais aqui.

Hoje eu fui até a casa da minha mãe. Estacionei o carro, peguei a chave e quase entrei.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O guarda

Como sempre cheguei quase atrasada na escola. Era terça feira e chovia em São Paulo. E claro que eu não tinha guarda chuva, nem capa. Por sorte, encontrei um lugar na porta. Quer dizer, naquele momento eu achava que era sorte. Foi a baliza mais rápida que eu fiz na vida: se corresse, teria tempo para um café antes da aula.

Durante o dia tudo correu bem. Depois do almoço, fui até o carro. E qual a minha surpresa ao virar a esquina? Dois guardas estavam na frente do carro. Meus joelhos começaram a tremer. Eu sabia que não poderia ter problema, tinha parado em local permitido e meus impostos estavam em dia. Mas confesso: tenho medo de polícia. E eles não pareciam felizes: davam voltas em torno do veículo, abaixavam procurando alguma coisa, colocavam a cara no vidro para investigar o interior. E aos poucos, fui me aproximando. Fosse o que fosse eu deveria enfrentar.

- Olá - eu disse, receosa.
- Esse carro é seu? - perguntou o guarda, nada simpático.
- S-s-i-i-m - gaguejei. Não seria melhor ir para casa de ônibus?
- Porque essa carreta é roubada. - E nesse momento percebi a carreta. Tinha chegado com tanta pressa que não tinha percebido.
- É?
- É, roubaram a carga e largaram a carreta aqui. O carro é seu mesmo?
- Sim.
- Porque eles está na frente da carreta roubada e pensamos que ele fosse roubado também. - Hein? Alguém pode me explicar qual a lógica utilizada pelos simpáticos policiais? Será que eles achavam que o cliozinho era capaz de guinchar uma carreta de 100 toneladas?
- Não, não é roubado. É meu.
- Mas olha só a bagunça! Ele é o perfeito carro roubado. Está cheio de livros soltos, tem um pé de tênis na frente e a palheta do limpador está levantada.

Fiquei com vontade de explicar para ele como era a vida de uma professora, que carregamos muito material, e usamos muitos livros que são pesados. Dizer que naquele dia eu tinha chegado atrasada, que não tinha guarda chuva, nem capa, e não tinha percebido a palheta, porque desliguei o carro correndo. Contar que com as tristezas da vida e com a ansiedade do mestrado eu tinha engordado uns quilos, então que eu estava jogando futebol e que se ele procurasse bem o outro pé do tênis - que na verdade era uma chuteira - estava lá, no banco de trás. E que ele não tinha nada com isso, que ele deveria cuidar do bem estar das pessoas e não se preocupar com a organização do meu carro. Mas não disse nada do que eu pensei. Me restringi a um abafado:

- Me desculpe. Não conta pra minha mãe?

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Pitágoras e o primeiro beijo

Quando estava na escola, nunca imaginei ser professora. Mas um amigo um dia me pediu para substituí-lo na escola em que trabalhava. Ele iria participar de um Congresso por três dias. O plano parecia ótimo, eu ganharia uma grana e o trabalho era fácil: cuidar dos alunos enquanto eles faziam uma lista de exercícios. O que poderia dar errado?
Nada. E de fato, não deu. O que veio depois é que mudou a minha vida. Acabei ficando mais na escola, para substituir a professora de geometria do fundamental que tinha sofrido um acidente.

Em uma aula de teorema de Pitagoras,  quando eu já estava um pouco mais a vontade com a escola, com a classe e com os alunos  uma aluna pediu para ir ao banheiro. Claro, pode ir. O que eu não sabia, e só eu não sabia isso, é que aquele era o horário do intervalo do primeiro colegial. E que a tal menina queria encontrar um garoto para o primeiro beijo. Bem na minha aula. Quando ela voltou para a classe, era tanta felicidade que ela olhava através de mim. Não me via, não via o Pitágoras e nem a melhor amiga ansiosa por comentários. Sentou e abriu o caderno com um sorriso no rosto.

E foi nesse dia, com teorema de Pitágoras e primeiros beijos que eu resolvi ser professora. Porque nesse dia eu percebi que a gente pode se surpreender com as pequenas felicidades e surpresas do dia a dia. Porque nesse dia eu entendi que ser professora é lidar com gente e gente se emociona, encanta, se diverte.


Mas o cotidiano também nos engole. E a gente pega a Rebouças parada, acumula coisas para corrigir, se irrita, briga com colegas, atrasa material, toma bronca. E de repente não se lembra mais porque escolheu fazer aquilo. E então você resolve esquecer a gripe, a pilha de provas para corrigir, o trânsito e até o eclipse, para assistir a peça dos seus alunos na quarta-feira à noite. Se emociona ao vê-los no palco. São os seus alunos, de todos os dias, aqueles mesmos que não fazem lição, que conversam nas aulas, que detestam física. Que agora estão lá, são maridos traídos, sargentos, assassinos, leram Sheakspere.
Você reconhece alguns e é apresentada a outros. E se lembra porque adora ser professora.